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O Colecionador

O hábito de colecionar é uma ação comum praticada por diversas pessoas mundo afora. Os tipos de objetos colecionados variam em preço, tamanho e muitos outros atributos. Uma coleção pode ir de conchas apanhadas na areia da praia, passando por joias e outros sem fim de objetos. 

 

No meu caso, o gosto é pelos violões clássicos de um determinado porte até instrumentos históricos. Colecionar violões é um misto de vários prazeres e sentimentos. Quando você pega um instrumento novo para acrescentar à sua coleção, pode observar e se deleitar com calma cada detalhe, cada nuance, as cores, os veios da madeira, os desenhos e matizes. Se o instrumento foi feito especialmente para você, além disso tudo, ainda tem o prazer de planejar como fará para que tal instrumento atravesse com sucesso os anos vindouros.

 

Um violão feito especialmente para você já terá toda a configuração que desejar, mas ninguém pode prever a beleza das madeiras, a beleza da aplicação do verniz, filetagem e, às vezes, o trabalho de marchetaria e, principalmente, como ele soará, volume, timbre dentre outros. Quando você tem em suas mãos essa maravilha, você tem a oportunidade e o dever de protegê-lo de danos e mau uso, para que ele passe na melhor condição possível pelo decorrer dos anos.

 

A principal maravilha, no entanto, está reservada aos violões históricos. Normalmente frágeis e extremamente raros e caros, esses instrumentos, além de sonoridade normalmente maravilhosa e delicada, oferecem um estímulo visual ímpar. Alguns são tão conservados que sequer parecem ter 100 anos ou mais. Outros são cheios de marcas. Marcas que se resumem em inúmeras cicatrizes de matizes variados.

 

Essas marcas contam histórias de tempos passados. De como o instrumento foi tocado, de como foi guardado, do cuidado ou falta de cuidado de seus proprietários anteriores. O verniz mostra muito do feitio e do manuseio. Marcas de unha, por causa de rasgueados ou batida com os dedos da mão direita, ou da fivela de cinto, de botões da camisa ou de ser colocado apoiado no chão.  

 

 

O interessante é que as cicatrizes e até rachaduras podem fazer parecer que o instrumento tenha pouco ou menor valor, mas quando a rachadura é no veio do tampo e as marcas não afetam a estrutura, dificilmente o valor é diminuído de forma drástica ou mesmo mediana. O que realmente importa é o som e a integridade estrutural, a parte cosmética conta, mas está longe de ser determinante.

 

Um violão antigo conta bastante sobre a história de sua vida. Não só do cuidado de seus proprietários, como dito acima, mas também de como era tocado. Ao passar por anos e anos o dedo polegar da mão esquerda na parte traseira do braço, fica uma marca indelével que corre por toda a extensão na qual era tocado. Uma pessoa que acompanhava tango ou música popular, por exemplo, deixa a marca no decorrer do braço, mas costuma deixar uma “mancha” muito forte na parte de traz das primeiras casas. Marcas de rasgueados mostram um uso intenso da mão direita, seja em música flamenca ou mesmo em músicas eruditas mais modernas.

 

Seja lá como for, o papel de um colecionador deve ser de extremo respeito ao instrumento, à sua história e até mesmo para com a história da música. Receber um instrumento com marcas, cicatrizes e rachaduras não demanda, é claro, que o colecionador deixe as suas próprias marcas. O mais importante é que as próximas gerações conheçam o trabalho do luthier da forma mais íntegra possível.

 

Um dos maiores trabalhos do colecionador é não deixar ninguém ou quase ninguém tocar no instrumento. Quanto mais manuseado, maiores as chances de dano. Isso não é feio. Você não chega no Met em NY e toca no Hauser do Segóvia e o motivo é exatamente o que falei, evitar ou diminuir as chances de danos. Alguns dizem que instrumentos são feitos para usar, quase certo, alguns instrumentos podem e devem ser utilizados ostensivamente. Mas outros são feitos para serem cuidados, protegidos. Pode ser de uma marquinha de unha ou até de esbarrar em algum objeto.

 

Um fato emblemático é o do Segóvia, que fazendo uma gravação com o Hermann Hauser I de 1937, teve o microfone batendo e quebrando o instrumento. Após tentativa de reparo com o Hauser II, que utilizou o verniz de nitrocelulose, segundo o próprio Segóvia, matando o brilho da prima mi. O violão considerado como o melhor do mundo pelo próprio Segóvia, está calado para sempre. O Segóvia deveria tê-lo guardado apenas? Acho que não, à época, era um instrumento novo, com toda uma vida pela frente, mas também acho que não houve cuidado suficiente.

 

Ainda sobre instrumentos já considerados históricos, existe ainda outros motivos para não serem carregados por aí. Imagine você carregando um apartamento (pelo preço) nas mãos, nas ruas, no carro, em locais onde inúmeras pessoas vão querer pegar ou tocar. Imagine uma batida de carro, um larápio que vai te tomar o instrumento e vender por R$ 50,00 para comprar craque, uma esbarrada na parede, uma pessoa que você deixa pegar e que toca uma música contemporânea dando batidas e tamboriladas com as unhas. É importante falar principalmente das batidas chamadas tambora ou  coisa do tipo, que em um instrumento mais frágil, pode significar o descolamento dos leques ou outros componentes estruturais

 

Um colecionador tem o trabalho de ser primeiramente um omisso, não deixar que saibam de seus instrumentos, de ser chato, de não deixar ninguém ou quase ninguém pegar ou tocar no instrumento. Uma autocrítica também é necessária, nunca se deve pegar no instrumento com sono, suado, deixá-lo encontrar na pele. Os diversos vernizes, que o colecionador deve conhecer de cor, reagem de forma diferente ao sal, ácido úrico, álcool e outros componentes químicos.

 

O principal desafio de qualquer colecionador é o clima. Se está quente ou se está frio e, principalmente a umidade relativa do ar. Abaixo de 50% ou 45%, ocorre o risco de rachaduras, acima de 60%, a umidade absorvida pode causar outros tipos de danos. Isso tudo é uma roleta russa. Muitos instrumentos reagem bem por anos e, no mesmo local, apresentam rachaduras. Pude experimentar isso com um instrumento que, depois de vinte anos começou a abrir uma fissura.

 

Por fim, com relação aos cuidados, é necessário escolher muito bem, mas muito bem mesmo, o luthier que você contratará para fazer reparos, pequenos ou não. Um simples deslize e seu instrumento poderá sofrer danos físicos ou em termos de valor monetário. O exemplo do Hauser II, o próprio filho do Hauser I estragar o suposto melhor violão de todos os tempos, é o aviso de como você deverá agir. 

 

Em determinados casos, mas muito específicos mesmo, se você se sentir com coragem e destreza suficiente para fazer determinado reparo, melhor você mesmo fazer, você é o dono e certamente será a pessoa que terá a maior preocupação e cuidado. Serei trucidado por meus amigos luthiers por ter dito isso. Mas veja, se existe alguma chance de você errar, melhor terceirizar o risco para alguém reconhecidamente especialista no assunto.

 

Entre as emoções boas e ruins que permeiam tudo nesta vida, uma das mais complexas é a que se enfrenta quando se vai negociar com o proprietário do instrumento. Algumas vezes é o proprietário do próprio instrumento, outras vezes, é alguém da família que o herdou. O primeiro, muitas vezes precisa vender o instrumento, mas ainda tem apego por ele, mesmo porque sempre é o caso de instrumentos excepcionais. 

 

No caso do herdeiro, a coisa é ainda mais complicada. Existem vários motivos para a venda do instrumento, ou a pessoa não toca, ou precisa do dinheiro, dentre outras razões. A verdade, é que nas duas situações existem altos e baixos, a pessoa pode desistir da venda e nunca mais conversar com você ou pode ir e voltar duas vezes, até que o processo termine. No início, eu ficava extremamente irritado e cheguei a xingar o dealer que estava intermediando. Depois de tudo, a negociação terminou dando certo. 

 

Mais tarde, enfrentei o caso de uma pessoa que ia se desfazer de um instrumento que era de sua avó e que tinha uma história maravilhosa. Eu já sabia que existia uma grande possibilidade de dar errado e tive a paciência de ver o proprietário desistir e voltar atrás, acredite, por mais de dez vezes. Por isso é importante respeitar a história do instrumento, ele traz a história de bons momentos de uma pessoa ou de uma família. Saber da tradição, poder falar um pouco deles mantém viva a memória das pessoas que nele depositaram seu tempo e suas habilidades musicais. Por todos esses motivos, o coração tem que ser forte.

 

Com o passar do tempo e com as negociações, incluindo a importância dos instrumentos, o colecionador acaba ficando conhecido no mundo inteiro, as ofertas de instrumentos são grandes, mas dificilmente se consegue comprar tudo, é só uma tentação e aflição sem fim. Também com o tempo, o colecionador acaba ficando conhecido pelos cuidados e conservação dos instrumentos. Isso faz com que diversos luthiers e violonistas o procurem e deem prioridade na compra de seus instrumentos. 

 

No meu caso tive a sorte de adquirir um instrumento muito especial de um dos maiores violonistas do mundo dos anos 60 a 80. São coisas que apenas o trabalho árduo e certamente uma boa dose de transtorno obsessivo compulsivo podem proporcionar.   

 

Para finalizar, o prazer de colecionar violões é algo tão intenso, que fica difícil explicar. Às vezes você fica um tempo sem manusear a coleção, mas em outro você faz a inspeção de um por um para saber se está tudo bem e só isso é um deleite e tanto, mas outras vezes, dá aquela vontade e você toca uma música, muda para outro, muda para outro e sai sem saber qual é o mais maravilhoso.  Às vezes a vontade é mais humilde e você escolhe apenas um para tocar. Colecionar livros que falem de forma dedicada dos instrumentos complementa o prazer, é impossível ter todos os violões do mundo, assim como é impossível ter mãos e dedos suficientes para tocá-los. Nunca colecionei mais nada, mas acredite, colecionar violões clássicos é bom demais. Em tempo, não conte que eu vá mostrar ou deixar tocar na minha coleção!  :-)

História do Hauser 1930
Hauser 1948
Domingo Esteso 1931
Infelizmente já não está na minha coleção
Foto Hauser Kathrin.JPG
Em Hesbach, Alemanha com Hermann Hauser III e Kathrin Hauser
Levando o Hauser 1948 para receber o certificado de autenticidade com a 3a e 4a geração dos Luthiers Hauser
 
Violao 1.JPG
Hauser 1948
Detalhe da cabeça de um Paul Fischer Double Top 2010
 
Detalhe da cabeça de um Paul Fischer Double Top 2010
 
AHumphrey.jpeg
Roseta de um Thomas Humphrey Millenium 1992
ex Sérgio Assad
 
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"Dona Monina"
O Abreu mais raro e talvez o mais caro, feito com o tampo de um violoncelo muito antigo que quebrou. Foi feito em 2011 em homenagem após a morte Dona Monina, importante violonista argentina
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